quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Arco-íris

Saltei do ônibus pro arco-íris. O mar estava lá, como sempre: as formas onduladas, as ondas tocando a areia da praia, sem descanso, o azul-marinho predominando. O céu também era o mesmo: azul, com uma enorme nuvem cinza-chumbo sobre o mar. O horizonte não escapava à sina de ser uma linha imaginária, mas aparecia tenazmente entre o azul meio apagado do céu da cidade e o azul forte do mar revolto. Pareciam entidades supremas, absolutas, o céu e o mar, um em cima, outro embaixo, abraçando o ar, que é a única coisa que entre eles há. As pessoas no ponto de ônibus do mesmo jeito que desde o começo: indiferentes. Apenas esperando o ônibus e pensando na vida, de costas pro arco-íris. E ele lá, majestoso, perturbador, o arco completo sobre o mar, de um começo a outro dava pra nadar, de seu ponto mais alto, grená, dava pra pular. Um arco-íris em alto relevo, saltando aos olhos, cores fortes e destacadas entre as cores pálidas do cotidiano. Cores feitas pelo sol.

Estava ali, de costas pra cidade, em frente ao mar, firmemente determinado a passar por aquele portal. Não entrevi o que me esperava além, mas no fundo, onde se engana todo mundo, sabia que era algo especular. Desci a escada e pisei a areia ainda de tênis. Cheguei-me à beira do mar como se chega à beira do abismo: amedrontado e fascinado ao mesmo tempo. Tirei toda a roupa que me cobria e entrei na água fria. Os pêlos eriçaram-se em meu corpo. Nadei pra depois das ondas: o mar me continha, eu fazia parte daquela imensidão. Senti-me indistinguível daquela massa soberana de água. A cidade parecia um mundo distante, fragmentado, uma forma feita de retângulos recortados e sobrepostos. O mar cobria meu corpo por inteiro, meu corpo inteiro se regozijava do mar. A amplidão era meu corpo, espalhando-se como os tentáculos de um polvo gigante ou como uma onda infinita que ricocheteasse nos obstáculos terrenos até perfazer todos os oceanos.

Quando passei o portal formado pelo arco-íris dei-me conta da jangada. Ela esperava, sem nome, com um baú de madeira pintado de verde. Subi nela automaticamente, como se fosse inevitável fazê-lo. Botei o baú entre os joelhos. Só então notei que o verde brilhava como uma coisa viva sobre a madeira. O sol batia naquela cor e a dispersava sobre o azul do mar, uma superfície que parecia intransponível a um mergulho mais profundo. Aquele verde não era tão forte quanto vislumbrei, mas calou qualquer imaginação. Estava vazio como se estivesse dormindo, pronto para ser acordado pelo conteúdo de sonho daquele estranho baú. Quando as mãos pousaram suavemente sobre ele, um leve tremor de excitação percorreu meu corpo. Abri-o de uma vez, sem esperar a surpresa num facho de luz intensa que me cegou por alguns segundos. Logo a jangada refez-se como um milagre ante meus olhos vidrados. O baú aberto também se materializou à medida que voltava a enxergar. Dentro dele um espelho de moldura laranja jazia. Peguei-o pela palma da mão direita com o polegar de sustentação. A imagem que se formou nele era meu rosto, mas meus olhos estavam sem cor. Não me assustei. Sabia, de alguma maneira, que aquela translucidez meio fantasmagórica, meio clarividente, não me impediria de ver o arco-íris. Olhei pra cima e ele estava lá, uma colorida cicatriz curva sobre o azul celeste. Olhei pra trás e a cidade não passava de um horizonte deformado, apenas uma linha imaginária criada pela conjunção ilusória entre céu e mar. Olhei pra frente e tudo que havia era água e um arco-íris pra me guiar.

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Millôreando

Nunca preparou o alimento que comia.
Morreu envenenado.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Do ostracismo

Do ostracismo mostro a língua pro mundo,
O que vale dizer comer-vos-ei.

O ostracismo é um morro bem alto,
De onde vejo com olhos incrédulos
Pessoas-formigas se batendo lá embaixo.

A ostra cisma com o que não é fechado
Enquanto cismo com o exílio voluntário de mim mesmo.

O ostracismo é um bom lugar
Pra se olhar o firmamento.

Do ostracismo (2ª versão)

Do ostracismo mostro a língua pro mundo,
O que vale dizer: comer-vos-ei.

O ostracismo é um morro bem alto,
De onde vejo com olhos incrédulos
Pessoas-formigas se batendo lá embaixo.

Com a ostra cismo por ser fechada
Enquanto brinco de nave alucinada.

O ostracismo é um bom lugar
Pra se olhar o firmamento.

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

solstício de verão

o maior dia do ano,
o dia sem sombras,
apareceu na janela
num azul mortiço,
sem graça.

a manhã passou
como se estivesse
estendida num varal,
estática.

a tarde se limitou
a uma languidez inexpressiva,
parada.

a noite se fez notar
antes de chegar,
pela demora
em se apresentar
em todo seu esplendor
de dúvida e calor.

seu mensageiro,
o crepúsculo,
olvidou-se do tempo,
divagando entre giz e tesoura,
recortando pedaços alaranjados de céu.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

impressões

a impressão que se tem
é que os dias se estendem
em varais de cordas nos quintais.
um dia parece uma vida
e amanhã ainda demora uma eternidade
pra acontecer.
parece que o tempo se expande
no espaço exíguo de um pensamento fortuito.

a impressão é que a alegria da virtude
não supera o prazer do vício.
a primeira parece se limitar em demasia
aos pudores imaculados
e dogmas restritos e fechados
aos conhecimentos não mais que vislumbrados
de religiões sem horizontes.
o segundo é uma entropia que tende ao infinito
num paradoxo inexplicável que beira o precipício.
um grito que esvazia os pulmões
do ar irrespirável das contradições
e os liberta para vôos variáveis
em naves espaciais memoráveis.