terça-feira, 21 de outubro de 2008

Dois Mestres

"Aprendi a tocar pife com 8 anos. Peguei nele e já fui tocando. Ninguém me ensinou. Fui meu próprio mestre". Foram mais ou menos estas as palavras de um mestre do pife do Crato, Ceará. Vi na televisão. Tão rapidamente, mas de longe sem a mesma vivacidade, quanto as palavras que brotaram de sua fala. O entusiasmo que elas continham, naqueles breves segundos, revelou o deus que ele tinha dentro de si. Com certeza ele continua tocando pife pelas ruas do Crato, e tocando pife pelas ruas do Crato é sua verdade primeira e derradeira, sua fala, sua vida eterna.

"Alembra do Senhor nos dias da tua mocidade, pois quando vierem os dias ruins, você se perguntará: para quê estou vivendo?". Estas foram as palavras que Seu Alfredo, 81 anos de idade e 53 anos de cristão completados no último dia 14, usou para arrematar seu breve discurso sobre a verdadeira religião, citando o Eclesiastes sem precisar abrir a pequena Bíblia que trazia na mão. Nesse ponto (quando o tempo se imbrica indelevelmente no espaço) o pequeno Cortázar que lia já estava fechado. Era todo ouvidos para o testemunho daquele homem para quem "quando as janelinhas se fecham só quem tem o passaporte entra na cidade santa". As janelinhas são seus olhos miúdos, ainda menores atrás dos óculos bi-focais; o passaporte é Jesus, cuja verdade ele com certeza sempre trazia na mão; e a cidade santa é sua vida eterna.

Entre tantas verdades, a minha é atentar para elas.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Mucugê 25 Graus

Apesar do clima ameno da Serra do Sincorá, que salta da terra como uma cicatriz salta da pele, o fogo estende suas labaredas de mais de 3 metros de altura sobre ela. A 1.200 metros acima do nível do mar o céu fica mais próximo (e mais azul) e o fogo pode estar logo ali. Suas línguas amarelas tremulam mais intensamente que as cores do pôr do sol. A fumaça corre célere pelo céu, ocupando o lugar das nuvens. A sensação de inação é inevitável. Estranha também, na medida em que causa um frêmito no corpo, vindo, de um lado, de uma espécie de fascinação atávica pelo fogo e, de outro, de uma vontade muda de fazer alguma coisa, de formar com os brigadistas uma barreira de carne humana ávida de chamas. Engolir o fogo com a boca.

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Adriana

Meu aconchego:
Do teu colo acolhedor,
Todo cama de pedras e travesseiro de folhas,
Faço meu berço,
Onde meu cabelo de furacão
Toca tua pele macia feito vento suave.

Meu poço de águas negras, infinitas,
Nado em tua amplidão de peito aberto,
Meu corpo flutua no teu universo estrelado
Do orvalho das árvores.

Teu fio de cachoeira me banha por inteiro,
Vazão perene de doçura e música.

Amálgama de folhas em preto e branco,
Toda verdicidade está em teu olhar,
Toda luz que da terra emana faz morada lá.

Minha paisagem imutável,
Teu movimento é delicado:

Está no calor que teu colo compartilha.

Na imensidão mágica que teus caminhos oferecem.

Na pureza de tuas águas cálidas.

No amor tranquilo que nos transforma em natureza.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Vicky Cristina Barcelona

O novo filme de Woody Allen passou pela cidade no 5º Festival Cinema de Arte de Salvador. Dois adjetivos bastam para qualificá-lo: charmoso e sensual.
O charme vem dos diálogos precisos, que delimitam a personalidade de cada personagem. Delimitar aqui não significa limitar, reproduzir estereótipos. O que se vê são tipos que se movimentam com fluidez pela tela. É como se eles fossem jovens amigos do cineasta e tivessem contado uma de suas histórias de amor durante um jantar intimista. Da conversa descontraída para o roteiro foi um pulo.
A sensualidade vem em seguida, sutil e inteligente nas cores, vibrantes mas sem exacerbações, e elegante nos diálogos, sem dúvida o maior destaque do filme. A tal ponto que Cristina afirma, ainda no início, que só não se entrega a Juan Antonio se ele fizer um comentário idiota. Woody Allen não o fará, oferecendo ao espectador o singelo prazer de assistir um bom filme.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Pontos Intersticiais da Realidade - A Mandala de Saramago

Uma fratura na impalpável dimensão espaço-tempo abre um ponto intersticial da realidade. Saramago percebe e escreve sua mandala na forma destes diagramas lineares, recolocando uma velha inquietação metafísica de sua infância. Ele alcança a dimensão pura da mente iluminada, e está dado o aforismo:

A escuridão é simplesmente o outro lado da luz, a sua face secreta.

Quando se apaga a luz ou o sol se põe, não é uma presença que substitui uma outra, nem uma presença que se transfigura em uma ausência ao se esconder atrás da cortina do universo. É a luz oferecendo a outra face.

No silêncio da noite, Mandala aparece com fios de arame entrelaçados propondo jogos e cosmogonias.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Filosofia de brejo

É a necessidade que faz o sapo pular.