domingo, 26 de agosto de 2007

Qual seu livro de cabeceira?

Perdoe-me a indiscrição. Pergunto por conta de uma curiosidade que beira a obsessão. Já me surpreendi de ponta cabeça pra descobrir o nome de um livro que passou por mim em outras mãos. Não por ciúme do livro, que tal sentimento seria inédito. Não por achar que ele estaria mais valorizado sob meus olhos. Mas por uma pulsão quase inexplicável de associar um rosto, uma circunstância e um livro. Três vetores que formam um gráfico de apreensão da realidade.

Certa feita, num ônibus, uma moça agarrava um livro com tanto ardor que a cidade podia afundar. Ela estava com sua tábua de salvação. Sentada na janela, seu corpo servia ao livro. Coladas, suas pernas formavam a base sobre a qual seu tronco se inclinava. Tocava o chão com a ponta dos sapatos pretos, melhorando a inclinação para a leitura. As mãos em palma seguravam o livro. Os dedos apertavam-no. Os antebraços sustentavam-no. O peito arfava. Podia imaginar sua respiração. Rápida, compassada, sibilante. Eu tinha que saber o nome daquele livro.

Estava sentado na outra fila de bancos, no corredor, praticamente do lado dela. Fingi que amarrava os cadarços. Virei a cabeça em sua direção. Vi uma saia branca rendada descer como uma cachoeira até abaixo dos joelhos. Ergui-me de súbito, surpreendido pela mudança de perspectiva. Olhei de esguelha, assombrado pela possibilidade de um rosto.

Meu pescoço virava a intervalos regulares. Era como se estivesse lendo um livro. Lia um traço do rosto dela e o desenhava na imaginação. A longa linha que ligava a orelha delicada ao queixo tímido era como uma frase sutil que descrevia o caminho que partia de um lugar de equilíbrio e chegava na beira do abismo.

O abismo. No segundo em que vislumbrei-o esqueci de mim mesmo. O sopro fundamental surge dali. A mulher lia o livro com a boca aberta. A distância entre os lábios era mínima. Caberia minha língua. O desejo nasce e morre pela boca. Não importava mais o que ela lia, mas como.

Os corpos inteiros atuavam nas leituras. O dela se inclinava todo para o livro. O meu estava todo virado para ela, de lado no banco, as pernas no corredor. Os olhos dela brilhavam, avançavam sobre as páginas como se depois fosse arrancá-las, uma a uma, para que outros olhos (os dela já tornados outros também) não maculassem sua pureza. Os meus fixaram-se nela, sem pudor. Sua boca abria-se sôfrega, desejosa de tragar cada frase pra dentro de si. A minha tornara-se abismo inconteste, capaz de engolir a mim mesmo.

Num átimo, uma partícula ínfima de pensamento escapou daquele campo de forças que era a mulher. De repente, ela virou a cabeça em minha direção e me encarou. Seu rosto estava em chamas, mais de raiva por ter sido surpreendida em pleno momento mágico de sua existência do que de vergonha por sua fragilidade. Feito lanças, seus olhos trespassaram-me, devassando-me o abismo. Engoli a seco aquela fúria de metal.

Num átomo de memória consigo visualizar o instante final. O rosto da mulher tornou-se lívido. Indiferente. Seu corpo se recompôs no banco do ônibus. Sua boca respirou fundo e se fechou, resguardando aquela energia abissal. Jogou o livro na bolsa. Levantou e partiu. Partiu-me ao meio. Não vi qual era seu livro de cabeceira.

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

Voltei

Por um pensamento infinitesimal
Não voltaria,
Mas por sua rapidez imensurável
Não ficaria.

Voltei porque sim,
Porque motivos não há
Pra dizê-los.

Voltei apenas,
Porque era inevitável voltar a ver
O que poderia deixar.

Voltei impelido pela curiosidade,
Pelo fim em si mesmo
De voltar.

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

Segundo Andamento


Li o segundo andamento
Em três goles de esperança.
No primeiro esperava Flávio,
No segundo esperava Ana.
O terceiro gole desceu de um trago,
Sem mal tocar a garganta.

O segundo andamento passa como uma música triste: no meio dela você se envolve com sua atmosfera melancólica e acaba a perder algumas de suas notas. O que fica são palavras que, lembradas, são os signos que despertam a memória da história narrada: mistura, mestiçagem, miscigenação: signos que indicam a emergência de questões políticas na viagem de Agualusa: questões que marcam as personagens e as desnudam. Este, definitivamente, é um livro de viagem. O que permanecerá ao final dela será dado pelo vento que sopra as melodias ao encontro umas das outras. O resultado será um verso ou uma sinfonia.

segunda-feira, 13 de agosto de 2007

Primeiro Andamento

O primeiro andamento apresenta o tema principal e suas variações. Agualusa escreve com simplicidade e concisão; em alguns momentos ele busca construções lingüísticas que extraem a beleza que há entre os nexos possíveis das palavras; o texto flui entre a alternância de notas, sendo que as duas principais se harmonizam em sua complementaridade; a melodia ganha cores fortes nos breves instantes em que as questões de identidade e pertencimento sobressaem. E os silêncios se fazem ouvir quando as explicações são insuficientes diante do assombro das personagens.

quarta-feira, 8 de agosto de 2007

A Verdadeira Viagem

A viagem de Agualusa por Angola é o verdadeiro ponto de partida da história que ele escreve. As personagens são versões dos viajantes: Agualusa é Mandume, Karen é Laurentina, Jordi é Bartolomeu, Azarado é Pouca Sorte. Claro está que essas relações não são diretas nem determinantes. São inspirações da realidade que expiram nas personagens, guiadas desde o começo pelo eixo narrativo central, pré-estabelecido por Agualusa antes das duas viagens: a verdadeira e a inventada.

terça-feira, 7 de agosto de 2007

Subtextos

Os caminhos que pareciam levar ao eixo narrativo central referem-se apenas a subtextos dentro do esquema geral do livro. Subtextos criam alternativas de imaginação, atalhos com árvores frondosas para diversificar a leitura, a fim de que não fique tão óbvio, antes da centésima página, a verdadeira viagem do autor.

segunda-feira, 6 de agosto de 2007

Ambiguidades

A voz de Mandume surge reveladora das ambigüidades que carrega. Português de origem africana, ele testemunha, impassível, a convergência entre realidades supostas e reais. Escusado seria escrever que ele é negro (mas já está escrito). Agualusa também não se furta a estabelecer identidades. Através delas as paisagens interiores se relacionam com as exteriores. Luanda é bela e caótica. Mandume renega os ancestrais africanos, mas retorna a África por amor a Laurentina. São esses contrastes, na voz angulosa do operador de câmara, que sintetizarão indivíduo e continente.

sexta-feira, 3 de agosto de 2007

Um Livro de Viagem ou A História de um Homem

A proposta de Bartolomeu a Laurentina de filmar um road movie sobre a história de Faustino Manso sugere o caminho que o livro do angolano José Eduardo Agualusa, as mulheres do meu pai, irá tomar. A forma será um livro de viagem e o conteúdo a história de um homem. Suspeito que a forma transbordará seus limites de interpretação e confundirá a real dimensão que Agualusa persegue. Desconfio também que o conteúdo será mais abrangente do que advier da idéia de Laurentina de realizar um documentário sobre o pai. Subtextos sobre a busca das raízes, a música africana e, principalmente, a relação entre a história individual de Faustino e a história de África. Tudo isso construído por anotações de diversas vozes: real no caso de Agualusa, que narra num diário a construção das personagens; e fictícias no caso das personagens, sendo a de Laurentina a mais frequente. Além disso o livro é dividido em quatro andamentos, explicitando sua relação com a música.

quinta-feira, 2 de agosto de 2007

Viajei

Vi além do meu querer, esqueci o que tinha que esquecer,
Abrindo a facão picadas na mata da minha mente encalacrada,
Revelando trilhas desconexas e equivocadas
Sob a selva espessa da confusão.

Andei caminhos empoeirados de uma poeira limpa,
Que gruda no corpo sem sujá-lo, protegendo-o,
Livrando-o da bolha artificial de higiene na qual vive,
Lançando-o de pés descalços sobre o chão.

Da estrada de barro nos meus cabelos a poeira,
E a boa sensação de assim tocá-los e, depois,
Alisá-los sob a chuva de qualquer cachoeira,
Os cachos molhados do orvalho do algodão.

A neblina da manhã cinza e verde desce primeiro nos cabelos,
Arbustos encaracolados que plantei na cabeça, cheios,
Local da primeira mudança, o pico mais alto e solitário,
De onde percorrerá em mim a seiva da revelação.

Destilei angústias em grandes cipoais de fumaça,
Senti o rio da água do rio descendo a garganta,
Criando vales de nomes impronunciáveis no corpo,
Preparando-o, branco e magro, para a última transmutação.

Voltei para o lugar de quatro paredes onde como e durmo,
Sentindo-me novo e manso, qual lobo que vagueia sem rumo,
Na paciência de retornar de onde vim, de saber que, depois da visão,
Tranformar-me-ei, por inteiro, no próprio Vale do Capão.