quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

solstício de verão (um presságio)

o maior dia do ano
amanhece nublado,
antes mesmo da barra do dia
aparecer por entre a cor azulada
da última noite.
entrevê-se o sol,
apenas,
atrás das nuvens plúmbeas.
tal configuração deixa o dia achatado,
preso entre o concreto acumulado
desordenadamente no chão
e o céu mais baixo que de costume,
quase ao alcance da mão.
o ar se torna abafado,
sem circulação.
os ventos recolhem-se
aos recantos mais recônditos do coração.


ao meio do dia não há mais sombras:
tudo é luz
a espargir-se sobre as cabeças mais incrédulas.


o crepúsculo surge como a aurora da noite:
um segundo amanhecer
para a glória da escuridão.


o maior dia do ano
encerra sua trajetória milagrosa
sem que ninguém perceba
o desabrochar de sua rosa.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

haikai

palavra:
pá que lavra
a terra ignota.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

o retorno de saturno

no início não havia um começo,
era apenas mais um ciclo se formando,
sem passado,
seja naquele instante ou no último,
sem presente,
que este pode ser infinitamente reduzido
até chegar a nada,
tornando-se a própria negação do tempo,
sem futuro,
um quadro abstrato de uma imaginação febril
cheio de cores em preto e branco.

no meio estava quando compreendeu que participava de um grande jogo que tinha como dono um acaso que insistia em se manifestar como mágico.

o bom fim à casa torna
pra regurgitar um recomeço,
um certo retorno
com um quê de incondicional
e um tanto de excepcional
na maneira como os caminhos se abrem
e se confundem ao mesmo tempo,
criando um labirinto
onde não é permitido deixar rastros,
o verdadeiro lugar do não pensamento,
atemporal,
onde dizer sim a cada momento
é dizer sim ao viver pleno.

saturno retorna
pra criar um labirinto anelado,
encurvado nas dobras do tempo,
alcançando todo o espaço.

dentro da esfera inexata
que se refaz em plena consciência,
o mergulho no oceano da essência
me transforma numa gota de água.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

A Meu Pai

"Amar é a eterna inocência,
E a única inocência é não pensar..."
Alberto Caeiro

Quando penso em meu pai vejo-me criança
E lágrimas me vêm aos olhos.
Foi lá que aprendi a amá-lo.
Depois de crescido comecei a pensar,
A questionar e perguntar sobre as coisas.
Guardo ainda em mim, no entanto,
A criança orgulhosa do pai
Que o ama com a mesma inocência
De um sorriso que se abre no espaço.

domingo, 25 de novembro de 2007

peregrino

vagueio por caminhos que não distingo..

a relva invade o asfalto,
árvores sobem dos buracos,
a poeira cobre tudo,
nublando a visão.

perambulo sem rumo,
procurando o paraíso,
farrapos e cajado.

o paraíso está além de qualquer passo,
curto, primeiro ou largo.

o paraíso está aquém do desejo de alcançá-lo.

o paraíso é tudo que não vejo..

domingo, 4 de novembro de 2007

sem título

a cada partida a alma se parte
em antecipada saudade
e medo

a cada chegada a alma se firma
em força, vontade
e desejo

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

O Caos das Idéias

Deixei uma inspiração passar...

Deixo passar muitas coisas.

...


Não adianta arrepender-se,
Nem afogar a mente
Com uma enchente
De idéias desconjuntadas.

Tenho que juntá-las devagar...

Ordená-las pelo caos.

Sobreviver às idéias,
Vivenciá-las.

Pousá-las em borboletas
E permitir que voem
E causem tempestades.

Deixá-las serpentearem
Pelos canais labirínticos do cérebro.

Que misturem as sinapses
Que caiam em abismos
Que pervertam os ismos
Que confundam os sismos
De uma vez só tudo isso

Serei testemunha de um mundo em apuros,
O caos das idéias.

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Liberdade

Liberdade é descontrole,
Labirinto e abismo.

Não pode ter placa
Ou sinais de aviso.

Estende-se ao longo do horizonte
E além do infinito.

Não tem data
Nem hora marcada.

Não bate ponto em fábrica
Nem mede palavras.

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

tempo

as coisas não foram
nem nunca serão
as coisas são

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Sentires

Se te sentires aquém,
Saibas que há outros sentires.


Teu coração perfeito
Desabrocha do peito
Com a delicadeza de uma flor.
Mas se ele um dia estiver ferido
Desabroche-o como um cogumelo ferino
Numa explosão atômica de dor.

Teu cheiro premente
Deixa um rastro fulgente
Que persigo com ardor.
Mas se me perco num atalho
Não te esqueças do resgate diário
Que precisas me impor.

Teu olhar orvalhado de luz
Ilumina o caminho que conduz
Ao mais puro desejo de amor.
Mas se exagerares na dose
Qualquer equilíbrio morre
Diante de tanto fervor.


Se te sentires além,
Saibas que há outros porvires.


segunda-feira, 1 de outubro de 2007

narciso imperfeito

essa mania de olhar no espelho
narciso imperfeito
faz rir de si mesmo
auto-ironia desmedida

essa obsessão de rasgar o peito
e sangrar o coração
faz chorar por si mesmo
auto-comiseração ressentida

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Quarto Andamento

Não atei o fio à meada. A leitura se dispersou em outras afinal. O que ficou foi uma sensação de incompletude. Um livro tem seu momento de ser lido. Uma pessoa tem seus momentos de distração, nos quais as palavras são apenas conjuntos de fonemas que sugerem um ritmo; são tantos os sentidos possíveis que brotam entre seus nexos que não sobra nenhum pra contar a história: melhor assim. Amanhã posso escolher outro objeto transcendente para projetar minhas inquietações.

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

dilema

ao cair da noite, o momento é agora! ganas de correr nu pelas ruas.

vontade súbita de uns olhos pregados nos meus. a possibilidade de um corpo.

tudo que vem há de voltar, numa forma ou noutra: crua, ruminada ou digerida.

braços abertos dão guarida: vem pousar tuas asas no meu peito.


o amor! ou a loucura?

entre esperar a sorte de um amor tranquilo
e vivenciar a loucura que há no mundo
prefiro exclamar o amor em versos perdidos
e questionar a loucura num beijo profundo

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

hai-kai

melancolia:
delicada forma
de alegria.

domingo, 9 de setembro de 2007

Maré

Os olhos bóiam na superfície do mar,
Esquadrinham tudo a volta,
E tudo a volta é mar.

Tanto mar,
E a maré ou enche ou esvazia.
O segredo é o tamanho das ondas e suas durações.

Os olhos testemunham o movimento da maré:
Avanço ou recuo indistinguíveis
Num mundo sem medições.

O mar é tanto
Que cala no fundo
O mote do acalanto.

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

Terceiro Andamento

De quando em vez a leitura se apressa, em busca desenfreada pelo final. A sucessão de personagens acelera o ritmo da música. Em contraste com o momento anterior, Agualusa rege as vozes de seu coral multirracial com desenvoltura. O próprio regente introduz o terceiro andamento com uma figura histórica no plano das artes de Moçambique. A partir daí Bartolomeu faz seu solo, apresentando personagens como a sensual cantora de dezenove anos e o pianista sem mãos. A música ganha traços exóticos quando Agualusa narra seu encontro com um célebre cantor de outrora daquele país: um cego que via. Em breve passagem, Mandume abre-se por primeira vez à influência benfazeja do continente. Um certo cheiro de África enleva seus sentimentos. Os momentos finais do andamento trazem revelações. Fatos que pontuarão a última parte da música.

domingo, 26 de agosto de 2007

Qual seu livro de cabeceira?

Perdoe-me a indiscrição. Pergunto por conta de uma curiosidade que beira a obsessão. Já me surpreendi de ponta cabeça pra descobrir o nome de um livro que passou por mim em outras mãos. Não por ciúme do livro, que tal sentimento seria inédito. Não por achar que ele estaria mais valorizado sob meus olhos. Mas por uma pulsão quase inexplicável de associar um rosto, uma circunstância e um livro. Três vetores que formam um gráfico de apreensão da realidade.

Certa feita, num ônibus, uma moça agarrava um livro com tanto ardor que a cidade podia afundar. Ela estava com sua tábua de salvação. Sentada na janela, seu corpo servia ao livro. Coladas, suas pernas formavam a base sobre a qual seu tronco se inclinava. Tocava o chão com a ponta dos sapatos pretos, melhorando a inclinação para a leitura. As mãos em palma seguravam o livro. Os dedos apertavam-no. Os antebraços sustentavam-no. O peito arfava. Podia imaginar sua respiração. Rápida, compassada, sibilante. Eu tinha que saber o nome daquele livro.

Estava sentado na outra fila de bancos, no corredor, praticamente do lado dela. Fingi que amarrava os cadarços. Virei a cabeça em sua direção. Vi uma saia branca rendada descer como uma cachoeira até abaixo dos joelhos. Ergui-me de súbito, surpreendido pela mudança de perspectiva. Olhei de esguelha, assombrado pela possibilidade de um rosto.

Meu pescoço virava a intervalos regulares. Era como se estivesse lendo um livro. Lia um traço do rosto dela e o desenhava na imaginação. A longa linha que ligava a orelha delicada ao queixo tímido era como uma frase sutil que descrevia o caminho que partia de um lugar de equilíbrio e chegava na beira do abismo.

O abismo. No segundo em que vislumbrei-o esqueci de mim mesmo. O sopro fundamental surge dali. A mulher lia o livro com a boca aberta. A distância entre os lábios era mínima. Caberia minha língua. O desejo nasce e morre pela boca. Não importava mais o que ela lia, mas como.

Os corpos inteiros atuavam nas leituras. O dela se inclinava todo para o livro. O meu estava todo virado para ela, de lado no banco, as pernas no corredor. Os olhos dela brilhavam, avançavam sobre as páginas como se depois fosse arrancá-las, uma a uma, para que outros olhos (os dela já tornados outros também) não maculassem sua pureza. Os meus fixaram-se nela, sem pudor. Sua boca abria-se sôfrega, desejosa de tragar cada frase pra dentro de si. A minha tornara-se abismo inconteste, capaz de engolir a mim mesmo.

Num átimo, uma partícula ínfima de pensamento escapou daquele campo de forças que era a mulher. De repente, ela virou a cabeça em minha direção e me encarou. Seu rosto estava em chamas, mais de raiva por ter sido surpreendida em pleno momento mágico de sua existência do que de vergonha por sua fragilidade. Feito lanças, seus olhos trespassaram-me, devassando-me o abismo. Engoli a seco aquela fúria de metal.

Num átomo de memória consigo visualizar o instante final. O rosto da mulher tornou-se lívido. Indiferente. Seu corpo se recompôs no banco do ônibus. Sua boca respirou fundo e se fechou, resguardando aquela energia abissal. Jogou o livro na bolsa. Levantou e partiu. Partiu-me ao meio. Não vi qual era seu livro de cabeceira.

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

Voltei

Por um pensamento infinitesimal
Não voltaria,
Mas por sua rapidez imensurável
Não ficaria.

Voltei porque sim,
Porque motivos não há
Pra dizê-los.

Voltei apenas,
Porque era inevitável voltar a ver
O que poderia deixar.

Voltei impelido pela curiosidade,
Pelo fim em si mesmo
De voltar.

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

Segundo Andamento


Li o segundo andamento
Em três goles de esperança.
No primeiro esperava Flávio,
No segundo esperava Ana.
O terceiro gole desceu de um trago,
Sem mal tocar a garganta.

O segundo andamento passa como uma música triste: no meio dela você se envolve com sua atmosfera melancólica e acaba a perder algumas de suas notas. O que fica são palavras que, lembradas, são os signos que despertam a memória da história narrada: mistura, mestiçagem, miscigenação: signos que indicam a emergência de questões políticas na viagem de Agualusa: questões que marcam as personagens e as desnudam. Este, definitivamente, é um livro de viagem. O que permanecerá ao final dela será dado pelo vento que sopra as melodias ao encontro umas das outras. O resultado será um verso ou uma sinfonia.

segunda-feira, 13 de agosto de 2007

Primeiro Andamento

O primeiro andamento apresenta o tema principal e suas variações. Agualusa escreve com simplicidade e concisão; em alguns momentos ele busca construções lingüísticas que extraem a beleza que há entre os nexos possíveis das palavras; o texto flui entre a alternância de notas, sendo que as duas principais se harmonizam em sua complementaridade; a melodia ganha cores fortes nos breves instantes em que as questões de identidade e pertencimento sobressaem. E os silêncios se fazem ouvir quando as explicações são insuficientes diante do assombro das personagens.

quarta-feira, 8 de agosto de 2007

A Verdadeira Viagem

A viagem de Agualusa por Angola é o verdadeiro ponto de partida da história que ele escreve. As personagens são versões dos viajantes: Agualusa é Mandume, Karen é Laurentina, Jordi é Bartolomeu, Azarado é Pouca Sorte. Claro está que essas relações não são diretas nem determinantes. São inspirações da realidade que expiram nas personagens, guiadas desde o começo pelo eixo narrativo central, pré-estabelecido por Agualusa antes das duas viagens: a verdadeira e a inventada.

terça-feira, 7 de agosto de 2007

Subtextos

Os caminhos que pareciam levar ao eixo narrativo central referem-se apenas a subtextos dentro do esquema geral do livro. Subtextos criam alternativas de imaginação, atalhos com árvores frondosas para diversificar a leitura, a fim de que não fique tão óbvio, antes da centésima página, a verdadeira viagem do autor.

segunda-feira, 6 de agosto de 2007

Ambiguidades

A voz de Mandume surge reveladora das ambigüidades que carrega. Português de origem africana, ele testemunha, impassível, a convergência entre realidades supostas e reais. Escusado seria escrever que ele é negro (mas já está escrito). Agualusa também não se furta a estabelecer identidades. Através delas as paisagens interiores se relacionam com as exteriores. Luanda é bela e caótica. Mandume renega os ancestrais africanos, mas retorna a África por amor a Laurentina. São esses contrastes, na voz angulosa do operador de câmara, que sintetizarão indivíduo e continente.

sexta-feira, 3 de agosto de 2007

Um Livro de Viagem ou A História de um Homem

A proposta de Bartolomeu a Laurentina de filmar um road movie sobre a história de Faustino Manso sugere o caminho que o livro do angolano José Eduardo Agualusa, as mulheres do meu pai, irá tomar. A forma será um livro de viagem e o conteúdo a história de um homem. Suspeito que a forma transbordará seus limites de interpretação e confundirá a real dimensão que Agualusa persegue. Desconfio também que o conteúdo será mais abrangente do que advier da idéia de Laurentina de realizar um documentário sobre o pai. Subtextos sobre a busca das raízes, a música africana e, principalmente, a relação entre a história individual de Faustino e a história de África. Tudo isso construído por anotações de diversas vozes: real no caso de Agualusa, que narra num diário a construção das personagens; e fictícias no caso das personagens, sendo a de Laurentina a mais frequente. Além disso o livro é dividido em quatro andamentos, explicitando sua relação com a música.

quinta-feira, 2 de agosto de 2007

Viajei

Vi além do meu querer, esqueci o que tinha que esquecer,
Abrindo a facão picadas na mata da minha mente encalacrada,
Revelando trilhas desconexas e equivocadas
Sob a selva espessa da confusão.

Andei caminhos empoeirados de uma poeira limpa,
Que gruda no corpo sem sujá-lo, protegendo-o,
Livrando-o da bolha artificial de higiene na qual vive,
Lançando-o de pés descalços sobre o chão.

Da estrada de barro nos meus cabelos a poeira,
E a boa sensação de assim tocá-los e, depois,
Alisá-los sob a chuva de qualquer cachoeira,
Os cachos molhados do orvalho do algodão.

A neblina da manhã cinza e verde desce primeiro nos cabelos,
Arbustos encaracolados que plantei na cabeça, cheios,
Local da primeira mudança, o pico mais alto e solitário,
De onde percorrerá em mim a seiva da revelação.

Destilei angústias em grandes cipoais de fumaça,
Senti o rio da água do rio descendo a garganta,
Criando vales de nomes impronunciáveis no corpo,
Preparando-o, branco e magro, para a última transmutação.

Voltei para o lugar de quatro paredes onde como e durmo,
Sentindo-me novo e manso, qual lobo que vagueia sem rumo,
Na paciência de retornar de onde vim, de saber que, depois da visão,
Tranformar-me-ei, por inteiro, no próprio Vale do Capão.

quarta-feira, 18 de julho de 2007

Experiências

Trata-se de uma experiência.
Elas estão aí,
Sopradas pelos ventos,
Para serem descobertas ou descartadas.
Em breve a resposta será encontrada.